SÍNTESE DO LIVRO "A CRIANÇA TERCEIRIZADA"
Encontrei esse material e achei muito interessante, gostaria de compartilhar com vcs.
Os descaminhos das relações familiares no mundo contemporâneo.
As famílias estão se dando conta de que o tempo para amar, fazer carinho, dar certeza de presença e do amor materno e paterno está diminuindo a passos largos. As avós estão se distanciando e também trabalhando sem cessar; já não conseguem preencher as lacunas que, até bem pouco tempo, preenchiam, por terem tempo de ternura sobrando. “Terceirização” parece ser um termo forte demais, mas que mais podemos dizer da “transferência” das funções maternas e paternas para outras pessoas?
A criança hoje é precocemente colocada para fora do lar (creches, escolinhas, etc), recebe atenção eletrônica cada vez em maior quantidade (vídeos, TV e jogos) e ainda é informatizada. E as relações pessoais e humanas, as cantigas e brincadeiras de roda, onde estão? As escolas conseguem cumprir a função educadora, socializadora e emocional? Até onde? A educação, o respeito, o afeto, o amor familiar devem ser apreendidos com os pais. Que resultados esperamos na evolução de crianças cuidadas por pessoas pagas para fazer papel de pai e/ou mãe? Dependendo das patologias emocionais e psicossociais das famílias, tais profissionais se comportam melhor que parentes neuróticos angustiados, que correm sem parar para pagar custos de um comportamento altamente consumista, pressionados por um marketing agressivo que exige dos mais jovens consumo exagerado, que leva à necessidade de ganhar cada vez mais, porque sempre é preciso ter um pouco mais: novo celular, o carro do ano, saldar a prestação da casa, manter o status social ou conservar o emprego que nem sempre se traduz em compensação econômica adequada para as perdas emocionais, principalmente em relação a família.
Será que as mães desta geração acham um sacrifício engravidar, parir, amamentar, limpar e cuidar de seus bebês? Por que será que as pessoas acham vergonhoso ser feliz em sua família e cuidar bem de seus rebentos? E mais, porque continuam querendo ser mães? Para depois não conseguirem assumir suas funções? O que realmente está acontecendo? Não dá para conciliar vida profissional e estudo com as tarefas de mãe e família?
Será que pediatras, psicólogos, mídia em geral não deveria esclarecer a muitas mulheres que pensam e desejam ser mães, mas não sabem o que as espera, achando que a maternidade deve ser realizada a qualquer custo, como quem compra um produto? Não deveriam saber quais são as necessidades concretas de um bebê, a situação real de uma gravidez e a importância dos pais no desenvolvimento infantil?
Famílias sonham em criar e educar crianças, mas não têm o menor interesse em conviver com elas, parindo-as e adotando-as para obter o título de “pais”. Depois se desesperam, não sabem o que fazer com os bebês, não suportam conviver com as crianças. Acham um “saco” parir, amamentar, cozinhar, cuidar, ler histórias, trocar fraldas, acompanhar o crescimento, as fases, o desenvolvimento. O mundo moderno leva muitas pessoas a sonhos tão altos, a exigências tão grandes de crescimento econômico, de conhecimento, de estudos que, parece, não está sobrando tempo para viver, criar filhos, ser feliz com coisas simples da existência. O pretendemos? Onde chegaremos? Estamos defendendo alguma coisa impossível de ser alcançada? Ter filhos é maravilhoso. O problema são as percepções atuais, modernas, do que é ser mãe e pai. Uma criança não é um brinquedinho que alguém resolve ter para alegrar a vida quando lhe convém. É um ser humano, com todas as qualidades, os defeitos e as exigências que seguramente aparecerão mais dia menos dia. Que os filhos, ao chegar, encontrem pais preparados e dispostos a se dedicarem a essa nova fase da vida, a um objetivo claro e definido: criar os filhos, acompanhá-los, compreendê-los, estar presentes nas horas boas ou más e, principalmente, saber que, depois do nascimento de uma criança, há uma mudança clara na vida de uma família. Esse é o problema do qual, muitas vezes, casais não se dão conta. Não é a criança que atrapalha, que é difícil, exigente, são os pais, que atualmente, parecem não estar preparados para abrir mão da correria, da troca do carro, daquele gasto extra, sempre influenciados pelo marketing que os estimula a comprar e consumir. Valeria perguntar: todos os adultos têm condições de se tornar pais?
Algumas crianças tem até três babás, a do dia, a da noite e dos fins de semana. A criança vai ao médico acompanhada pela babá ou avó que muitas vezes não sabe da rotina e história da criança. Nesse tipo de relacionamento terceirizado, podemos observar outros fenômenos. Quem educa? Quem orienta? Quem coloca os limites? A educação tanto formal como ética e moral, acaba sendo transferida para outras pessoas ou as escolas; assim os pais esperam que elas desempenhem essa função. Há uma constante transferência de responsabilidades. E, se formos um pouco mais adiante, perceberemos que a formação do caráter dessa criança acaba sendo feito pela babá eletrônica, por meio da TV, dos jogos eletrônico, dos DVD’s , dos filmes. Algumas babás, assim que as mães saem, colocam a criança na frente da TV para que fiquem quietinhas. É notória a criança viciada em TV, pois onde chega, quer assistir TV, não tem criatividade, não interage, seu comportamento e vocabulário é totalmente repetição daquilo que assiste. Dá pra perceber a ausência de relacionamento familiar na formação da criança.
Diante de tanto despreparo dos pais, assistimos crianças esquecidas pelos pais dentro dos carros, falecendo de desidratação. Outros trancam a criança no carro para ir a bailes! Quase sempre são acidentes, mas confirmam o abandono. Estariam essas pessoas preparadas para a paternidade/maternidade?
E o que é o abandono? Abandonada é a criança não assistida pela família e que não tem relação de continuidade com ela, mesmo que esteja em instituição ou abrigo. Não estou falando apenas das crianças menos favorecidas, mas também daquelas que vivem em “gaiolas de ouro”, têm todo o conforto, freqüentam as melhores escolas, têm os melhores brinquedos, mas não têm o amor, o cuidado dos pais.
Viver em família é a melhor solução para a prevenção de distúrbios de desenvolvimento físico, emocional e cognitivo. Ninguém pode substituir a relação pessoal familiar, com a mãe, pai e os familiares mais próximos. Não quero dizer que todas as babás sejam prejudiciais. A famosa frase diz: “a mãe é quem cuida”, aplica-se muito bem aqui, pois a criança tem tudo, menos o amor verdadeiro dos pais. Infelizmente, muitas comprovações levam a acreditar que salvo exceções, tais crianças “poderão ser adultos como qualquer outra criança que tenha vindo de um lar caótico e disfuncional, crescendo sentindo-se pouco valiosa, não merecedora de cuidado, podendo ter dificuldades de cuidar de si mesma. Famílias numerosas também podem sobrecarregar a mãe de tal forma, que a criança pode se sentir abandonada, onde muitos exigem a atenção dos pais e estes não conseguem atender a todos.
E a educação? Quem determina isso? Com base em que conceitos culturais, psicológicos, familiares? As crianças mimadas quase sempre são aquelas que vivem cercadas de pessoas, mas nenhuma delas define um parâmetro educacional. Umas temem perder a simpatia da criança. E o que no começo é alegria, depois se transforma em choro, rebeldia, gritaria, insônia. Crianças terceirizadas costuma ser “soltas”. Como os cuidadores não são os pais, na maior parte dos casos, a função de educar fica prejudicada para que não pareça que há exagero no cargo que ficou sob a responsabilidade da babá ou avó.
Algumas crianças terceirizadas se tornam mini-executivas: vão à escola, à aula de inglês, à aula de tênis, futebol, professor particular, mas não têm tempo para brincar, fantasiar, saltar, ser livres, tudo o que elas GOSTAM E PRECISAM. Vivem em gaiolas de ouro, com dinheiro suficiente para ter sua vontade realizada. Nas classes baixas, a rua é abandono; na classe média ou alta, o mesmo desprezo é disfarçado de muitas horas cheias de atividades que apenas visam preencher lacuna de não –presença, se tornando alvo fácil para o consumismo.
Não posso esquecer das mães de vida difícil e sacrificada que traz consigo a problemática da necessidade de sobreviver e da modernidade de um sistema cruel que lhe cobra, mas não lhe oferece saída. Se ao menos as mães tivessem sua jornada de trabalho reduzida e um benefício que lhes ajudasse, como é feito em outros países com França e Holanda?
O que se pretende com essa reflexão é a maternidade e paternidade consciente. Não dá pra pensar em trabalhar tempo integral, fazer pós-graduação à noite, comprar uma casa, continuar na vida de solteiro e ter um filho! Essas coisas são muito difíceis de serem levadas a sério e com competência. Algo não será feito adequadamente.
Em nossa sociedade já não se pode falar em patriarcado e matriarcado. O que temos realmente, salvo exceções interessantes, é a ausência de definições de papéis, de quem assume o que em relação à família ou aos filhos. As pessoas vivem com medo de ser criticadas, de assumir que tiveram a coragem de fazer uma opção pela família. O que se propõe? A volta da mulher à condição de dona de casa e rainha do lar? Claro que não, o que se propõe é a conscientização da paternidade e maternidade. Crianças choram a noite, nem sempre dormem bem, precisam de cuidados especiais, de limpeza, de banho, alimentação, ser educadas e acompanhadas até idade adulta. Será que todos os seres humanos precisam ser pais? Sejamos sinceros, nem todo mundo está disposto a arcar com esse ônus. Talvez seja melhor adiar um projeto de maternidade, e mesmo abrir mão dessa possibilidade, do que ter um filho ao qual não se pode dar atenção, carinho e, principalmente, presença constante.
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Síntese feita Luciene Rochael para o livro "A Criança Terceirizada" de José Martins Filho, médico pediatra, professor da pós-graduação em Saúde da Criança e do Adolescente, além de pesquisador do Centro de Investigação em Pediatria.